Recordar e aprender:
Como já vimos, quem morreu foi o trema e
não a crase. Assim sendo, nossas dúvidas continuam. Vejamos a seguir
alguns casos curiosos.
Casos especiais
1. A crase no cardápio
A
comida estava insossa, o atendimento foi “amargo” e a conta ficou
“salgada”. Há alguns restaurantes estão devendo qualidade. E, se não
bastasse tudo isso, ainda tem o menu. Bem, eu prefiro o cardápio. Se
possível, escrito em bom português.
Dizem que, se os nossos cardápios fossem escritos em língua
portuguesa, haveria um “festival de crase”. É verdade. Nos nomes da
maioria dos pratos, está subentendida a expressão “à moda de”. Para quem
não sabe, quando se subentende “à moda de” ou “ao estilo de”, o uso do
acento da crase é obrigatório: “bife à milanesa” (= à moda de Milão),
“filé à francesa” (= à moda da França), “tutu à mineira” (= à moda de
Minas), “churrasco à gaúcha” (= à moda dos gaúchos), “arroz à grega” (= à
moda da Grécia).
Esta regra se aplica até antes de palavras masculinas. Um “churrasco à
Osvaldo Aranha” merece o acento da crase, pois significa um churrasco
“à moda de Osvaldo Aranha, ao estilo de Osvaldo Aranha”.
Recentemente, tive o desprazer de ler no cardápio de um fino restaurante: "Espaguete à la bolognese".
Isso é demais! É o samba do crioulo doido! Ou escrevemos tudo em
italiano ou francês ou, o que seria preferível, tudo em bom português:
"Espaguete à bolonhesa".
Temos ainda os casos polêmicos: “filé a cavalo” ou “à cavalo”; “frango a passarinho” ou “à passarinho”.
Alguns defendem que o filé não é “à moda do cavalo” e que o frango não é “à moda do passarinho”.
Vejo tudo isso como uma discussão sem fim. Muitos preferem
simplificar: em todos os pratos sempre está implícita a ideia de “à moda
de” por mais estranha que possa parecer. Assim sendo: “filé à cavalo” e
“frango à passarinho”. Crime é cobrar esses casos polêmicos em
concursos.
É...pelo visto, a crase está tirando a fome de muita gente.
2. A falsa crase
É sempre bom lembrar que
crase não é acento. Crase, por definição, é a fusão de dois sons
vocálicos iguais. Para indicar a fusão da preposição “a” com outro “a”
(artigo ou pronome), devemos usar o acento grave: aa = à.
Em “referiu-se à carta”, não há dúvida quanto à crase. Temos a
preposição “a” exigida pela regência do verbo referir-se (quem se refere
sempre se refere “a” alguma coisa) e o artigo feminino “a”, que define a
carta.
A prova da existência das duas vogais iguais é que no masculino
teríamos “referiu-se ao documento” (= preposição “a” + artigo masculino
“o”, que define o documento).
“AO” no masculino corresponde a “aa = à” no feminino.
Pode, entretanto, haver a necessidade de usarmos o acento grave
indicativo da crase, mesmo sem a contração das duas vogais “aa”. É o
caso de “vender à vista”. Em “à vista”, não há crase (= corresponde a “a
prazo”, e não a “ao prazo”). Não há artigo definido feminino “a”, mas o
uso do acento da crase é necessário para evitar mal-entendidos.
Em “vender a vista” (sem o acento grave), haveria ambiguidade: é o
modo como a coisa foi vendida ou é a coisa (panorama ou olho/retina) que
foi vendida. Sem o acento grave, “a vista” poderia ser o adjunto
adverbial de modo ou o objeto direto do verbo vender.
Em nome da clareza, sugiro o uso do acento grave (indicativo da
crase) nos adjuntos adverbiais femininos: “Uns vendem à vista; outros, a
prazo”.
É essa a falsa crase. Geralmente, isso ocorre nas locuções que
indicam meio ou instrumento: “bater à máquina”; “receber à bala”;
“feriu-se à faca”; “recebeu à pedrada”; “entrar à força”; “estar à
venda”; “escrever à tinta”; “desenhar à mão”...
A dúvida que nos resta é: o uso do acento grave nesses casos é obrigatório ou deveríamos usá-lo somente em caso de ambiguidade?
Se não houver o risco de dupla interpretação, fica a gosto do
freguês, mas existe uma fortíssima tendência ao uso da falsa crase.
Para simplificar as coisas, sugiro o uso do acento grave em todos os
adjuntos adverbiais (lugar, tempo, modo, meio, instrumento,
intensidade...) femininos: à beça, às claras, à deriva, à distância, à
força, à mão, à toa, às vezes, à vista...
Mais uma vez, estamos diante de um caso que não deveria ser cobrado em concursos do tipo “certo ou errado”.
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