terça-feira, 17 de agosto de 2010

Texto para leitura: Conto - Contribuição de Theresa de Lisieux

Existir
           
            Assinar meu nome. Escrever o nome dela. Ler o jornal. Pegar o ônibus sem ter que perguntar a ninguém. Comprar o Cebolinha na banca e passar a tarde de domingo lendo. Escrever um bilhete que eu quero há muito tempo – enquanto José assentava os tijolos, era isso que ele pensava sem parar.
            Por volta das dezessete horas, a sirene do canteiro tocou da mesma maneira de sempre: frenética e louca, como se anunciasse um tsunami,  mas José acreditou ouvir um arauto divino anunciando uma boa nova: ele estava liberado e iria se arrumar para assistir à primeira aula de sua vida.
            Depois de tomar um banho frio, porque o alojamento não tinha chuveiro elétrico,  parou diante do espelho. Viu que era um homem forte, bonito até, mas faltava-lhe algo, um recheio, um estofo mais nobre, uma alma talvez. Não, alma não - ralhou consigo mesmo -  que o padre da terra dele já havia dito que tinha uma alma boa. Naquela noite em que se despediam na rodoviária, padre Onofre até havia lhe recomendado não sucumbir às tentações da cidade grande, para não manchar a dita-cuja – a alma. E assim fizera, só trabalhava e via TV no canteiro da obra mesmo. Um dia até havia tentado ir ao centro, mas a visão não era nada parecida com as que assistia nas novelas, então ele voltou. Os colegas não cansavam de chamar “pra ver mulher”, mas José não esquecia a sua amada, a quem prometera voltar assim que pudesse, logo que mudasse de vida. Porém, já havia percebido como seria difícil cumprir a promessa feita, a palavra empenhada. Por isso, quando anunciaram uma escola noturna, ali mesmo no alojamento, José não se conteve de felicidade: iria ver a luz, como diziam, iria aprender a ler e escrever. Pensar em escrever poemas para Maria era o que de mais precioso poderia almejar, embora mal soubesse desenhar seu próprio nome.
            E foi assim que, noite após noite, as mãos calejadas de José equilibraram o lápis, enquanto procuravam ajeitar o caderno num ângulo mais confortável da carteira escolar. Seu corpo era grande demais para caber nela, mas sua vontade recheava por inteiro os deveres que fazia de madrugada, antes do despertar, às cinco e meia da manhã, para mais um dia de serrote, pregos e perigos.
             O sol, porém, não conseguia brilhar mais que seu sorriso cheio de falhas. José tinha passe livre naquele mundo paralelo, onde milhares de coisas aconteciam ao mesmo tempo e que ele jamais fora capaz de enxergar. Era só olhar: a banca de jornais, os cartazes na rua, os letreiros das lojas, os avisos no canteiro, a bula do remédio que o doutor da obra passara para suas dores nas costas. Havia um mundo novo, que agora era seu também. E quando, com auxílio da professora, pôde escrever a primeira carta para Maria, aí já não faltava nada para sentir-se no paraíso.
            Semanas depois pediu um sanduíche na lanchonete da esquina e escolheu no cardápio, ele mesmo, o tipo de salada e queijo que queria colocar dentro. Leu “42”  na sola do sapato novo, com o qual iria viajar de férias e achou a letra “G” de grande, na camisa que ia vestir na primeira noite que fosse encontrar com Maria. Na rodoviária, decidiu a poltrona em que iria viajar naquele desenho do computador: optou pelo número “1”, pois era assim que se sentia: o primeiro. Na bagagem, muitos livros comprados nos sebos da rua São José, de onde apagava o nome do antigo dono e, com cuidado, escrevia o seu, com a data da compra. Leu Machado, José Alencar e tentou Clarice Lispector, mas desistiu, porque era muito angustiada, como ele, aliás.
            Após cinco anos na cidade grande, José havia chegado a mestre de obras, com planta de arquitetura na mão, ao invés de ferramentas penduradas no cinto, mas decidiu retornar à suas origens, aos seus, sem muito mais dinheiro do que saíra, mas carregando um tesouro inestimável. Com ele ergueu seu castelo, reconstruiu sua vida. José iniciou um pequeno comércio e fez questão de esculpir na placa de madeira virgem uma expressão para pendurar junto à porta: Benvindos. Na cerimônia de casamento, retirou do bolso uma folha de papel onde redigira uma promessa e a leu para a noiva, secretamente. Na última linha, se a nós fosse permitido ler, numa letra caprichada, escrita à caneta-tinteiro, a frase derradeira: “eu te amo e irei te mostrar um mundo novo”. Quem sabe, pode-se pensar,  José desejasse viajar pelo mundo com Maria.
            No dia seguinte às bodas, ainda em clima de lua-de-mel, José mostrou a Maria o seu presente: uma saleta nos fundos da lojinha. As paredes eram caiadas de branco e havia duas estantes cheias de livros. A carteira escolar fora feita por ele, com os mais nobres instrumentos de marcenaria e a melhor madeira da região. Ao abrirem a porta, um filhotinho de cachorro, com laço na cabeça, pula nas pernas de Maria, suplicando-lhe colo. Ela o tira do chão e o aconchega em seus braços.
            - Maria, este é o segundo presente-surpresa – disse José lhe sorrindo.
            -Ele é lindo- diz Maria cobrindo-o de carinhos – como se chama?
            - Dig. - responde o marido emocionado - e é uma cadelinha.
            - Dig? De onde você tirou este nome? Maria pergunta, acariciando o animal.
            - Eu me inspirei na palavra Dignidade, Maria, uma das palavras mais bonitas que eu aprendi  a escrever. Vou te ensinar.

2 comentários:

  1. Theresa, muito valiosa sua contribuição, continue escrevendo textos interessantes como esse, que só nos enriquece. Uma mensagem simples, objetiva e ricamente emocionante. Obrigada!

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  2. Gostei muitissimo, tem parte II? e III e IV?
    Mimi.

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